Em artigo publicado na revista Journal of Medicinal Chemistry, os cientistas descrevem a ação inibidora da molécula na fase sanguínea e hepática do ciclo assexuado do protozoário, responsável pelos sinais e sintomas da doença.
Além dos estudos realizados com cepas de cultivo in vitro, os pesquisadores também testaram a molécula em camundongos. “Nos testes feitos no quinto dia do estudo, a molécula conseguiu reduzir em 62% a quantidade de parasitas presentes no sangue (parasitemia). No final dos 30 dias de testes, todos os camundongos que ingeriram doses da molécula sobreviveram”, explica Rafael Guido, professor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do artigo.
A molécula candidata a se tornar um fármaco foi sintetizada com base em compostos naturais encontrados em bactérias marinhas conhecidas como marinoquinolinas, avaliadas quando descobertas contra a malária, a doença de Chagas e a tuberculose. No entanto, os produtos naturais só apresentaram uma ação entre moderada e fraca contra os patógenos.
"O núcleo dessas moléculas, conhecido como pirroloquinolina [que contém o núcleo 3H-pirrolo [2,3-c]quinolínico], chamou a nossa atenção. Esta é uma estrutura rara entre produtos naturais e pouco abordada na literatura científica”, observa Carlos Roque Duarte Correia, professor do Instituto de Química da Universidade de Campinas. Em 2012, o grupo de pesquisadores da Unicamp publicou uma das primeiras sínteses das marinoquinolinas naturais na literatura científica.
"Durante o trabalho de síntese percebemos o enorme potencial farmacológico dessas moléculas. Fizemos então novas modificações estruturais na parte da pirroloquinolina, empregando eficientes processos catalíticos, e a partir da estrutura obtida criamos uma nova molécula com potência ampliada em centenas de vezes contra o Plasmodium falciparum e sem aumentar sua toxicidade”, explicou Guido.
Duarte Correia comenta que no estudo foram testadas as 50 primeiras moléculas desenvolvidas a partir das marinoquinolinas. “Mas o trabalho não culmina nessa publicação. Temos ainda uma série de outros compostos sendo desenvolvidos”, afirma.
O grupo ainda está caracterizando o potencial desse tipo de moléculas para tratar a malária causada pelo Plasmodium vivax, a forma da malária mais prevalente no Brasil, e está desenvolvendo a parte de farmacocinética do projeto, que se refere à reação do organismo ao medicamento.
“Se as propriedades do composto, como a solubilidade, a absorção, a distribuição, o metabolismo e a excreção não forem adequadas, ele poderia acumular-se no organismo e se tornar tóxico para o paciente, o que inviabilizaria o medicamento. Quando concluirmos esta etapa, nosso objetivo consistirá em realizar os testes pré-clínicos e os ensaios clínicos”, disse Guido.
Morto de fome
Os mecanismos de ação da molécula ainda não são inteiramente conhecidos. Mas já se sabe que entre eles se encontra uma via clássica de inibição do parasita, conhecida como metabolismo de hemozoína. Essa estratégia consiste em manter baixa a concentração desse composto, que é tóxico para o parasita. Quando o parasita se instala no hospedeiro, infecta em primeiro lugar os glóbulos vermelhos, “pois a hemoglobina presente nessas células constitui a única fonte de energia que o parasita encontra para consumir’. Mas a hemoglobina contém uma molécula de cofator unida a sua estrutura chamada grupo heme, que, na forma livre – quando está desconectada da hemoglobina –, é altamente tóxica para os parasitas.
Anos de evolução dotaram o parasita da capacidade de desenvolver um mecanismo que polimeriza esse grupo para se livrar de sua toxicidade. “Essa estratégia do parasita de obter energia, que consiste em obter energia sem se intoxicar, funciona mais ou menos como varrer a poeira para baixo do tapete. O grupo heme continua presente, mas em uma forma polimerizada e insolúvel que não é tóxica para o parasita”, destaca Guido.
A molécula desenvolvida pelo grupo de pesquisadores atua, entre outros mecanismos, impedindo essa polimerização. Desse modo, o parasita é intoxicado pelo grupo heme. “A molécula atua impedindo a formação do polímero hemozoína, que é a forma que o parasita desenvolveu para se livrar da toxicidade do grupo heme. Ao impedir a formação da hemozoína, o parasita morre”, argumenta Célia Regina García, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo e também autora do artigo.
Cepas resistentes
Outro indicador de que a molécula derivada de marinoquinolina é forte candidata a fármaco reside no fato de conseguir matar as cepas resistentes a três dos principais medicamentos contra a malária: a cloroquina, a pirimetamina e a sulfadoxina.
“A cloroquina tem sido pouco usada para o tratamento da malária falciparum, que é a responsável pelos casos mais graves e fatais da doença. A expectativa é que a artemisinina siga o mesmo caminho. Atualmente, a artemisinina é o principal fármaco em uso para o tratamento dessa doença. Embora ainda seja eficaz, é um fármaco com os anos contados por causa do aumento da resistência a ele, e essas cepas resistentes estão se propagando por toda a Ásia. Por fim, há uma preocupação mundial em desenvolver fármacos para a malária e acho que o Brasil é um país que tem potencial para se destacar nessa área”, argumenta Garcia.
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) a malária mata hoje 445 mil pessoas por ano. “Se hoje em dia, com um medicamento eficaz, temos um número tão elevado de mortes, se não houver o desenvolvimento de novos fármacos no futuro a malária pode matar ainda mais pessoas. É a parasitose que mais mata no mundo, mesmo considerando que atualmente há um tratamento relativamente eficaz”, conclui Guido.